Élvio

Após percorrer os caminhos da morte cruel e pagã de uma conterrânea que jazia injustiçada no Cemitério das Mercês, as pedras capitais antigas me reconduziam às portas fechadas da São Francisco de Assis no inverno quente da Vila Rica de meus sonhos igualmente antepassádicos. Ofegava maravilhado com o amarelo ouro, um amarelo outro, que não era imponente e cedia às pressões do tempo impiedoso, ciente de seu amarelês, visceral ao me revelar a sua perenidade face à crueza de seu reboco.
Coincidiu de a visitação ao interior da Igreja de São Francisco de Assis iniciar. A poeira do recinto trazia em si suficiente conteúdo de idade. Adentrei pela nave. Tudo era simples arquitetonicamente, mas meus olhos foram tomados pelos adornos. Tudo era de um Barroco absoluto. A paixão da minha adolescência literária de gênero (ah, o tempo em que a literatura era de gênero!!!). Um arrepio fora de contexto percorria-me a espinha enquanto minhas pupilas devoravam ávidas as pinturas do interior. Consumi tudo o que vi até chegar ao chão, onde Ele pousava inerte. Quisera vitrais e recebi um homem de aparentes 22 anos fincado na madeira grossa e enceirada. Achei que fosse um zelador das almas, tal a rudeza de seu porte, fino trabalho de artesão local. Ele riu-me pela primeira vez. Senti minha alma escorrer pelas pontas dos dedos a pingadas grossas.
Era belo como qualquer escultura presente, mas não era antigo. Era novo e ria pelo canto esquerdo da boca. O sorriso era indubitavelmente celestial e disputava com as outras perfeições presentes. Era branco e tímido. Lembrava-me de que era proibido o uso de máquinas fotográficas e me explicava os motivos. Ouvi-o sem compreender palavra. Compreender era desnecessário, então deixei que ele me falasse e sorvi sua voz. Eu estava vampiresco e isso era um claro sinal de que entrava numa existência superior de sentimentalidades de concreto grosso. Cada compasso de seu sotaque mineiro varava-me todo, como os fracos raios de Sol que atravessavam as paredes do templo. Resolveu ir comigo até o altar. Exercia com disciplina e paixão seu ofício de guia, era sério ao me apontar todos os símbolos pagãos presentes no altar e eu mais uma vez apenas o ouvia, como cabia a mim naquele instante. Decidi pedi-lo em casamento ali mesmo, convidaria o casal de japoneses e uma francesa desbanhada que perambulavam zombiasticamente como testemunhas. Exatamente, seria assim mesmo. Sob esse símbolo pagão uno-me a ti, Anjo Decaído. Declaro-te meu medo do claro e do escuro, e é por muito sentir medo dos opostos que eu sou barroco. E é por todo esse barroco que eu te amei de pronto. Um holofote projetado no altar tirou-o da penumbra igrejal e eu contemplei sua alvura ainda maior. Os dentes ridos eram retos, perfilados, a fala tímida e mineira. Era dali. Tinha que ser dali. Não, não estudava - ainda - começo esse ano. Ah, História - o riso dele parecia desfazer-se. Segui o fluxo fluido de sua empolgação pueril. Olhei outramente para a Abóbada, procurando o lugar de onde provavelmente ele decaíra. Convidou-me a deitar nos bancos para melhor visualização da pintura e falou-me das coisas que os homens fazem, dos tempos de outrora - que não me interessam porque naquele tempo eu não era ninguém - e ria como se tudo fosse importante e novo para si. Perguntou-me de onde era e respondi qualquer coisa. Ah, a Eucaristia, não, não vi. Contornamos pelos fundos, atrás do altar e uma imagem de Cristo sendo retirado da cruz por um apóstolo tragou-nos para uma zona de um erotismo religioso e intenso. Os rostos das esculturas estavam próximos (à distância de um beijo), seus corpos enlaçados e os narizes perfilados. Demo-nos a mesma olhada e uma sensação similar percorreu do meu corpo até o dele. Não comentamos. Soubemos das sensações um do outro. Definitivamente o altar o elevara em meus pensamentos, mas a madeiridade carvalhal daquela escultura eucarística nos conectou pelas artérias. Éramos completos naquele instante. Traduzi à voz altas trechos de latim salpicados pelas pinturas da sala e ele riu extasiado. Sempre quis aprender e pediu que eu repetisse novamente, para que ele pudesse compreender. Éramos opostos: eu ouvia e ele se ocupava em compreender. Repetiu por trás de mim e riu de modo próprio. Era mesmo dado às alegrias de igreja. Achou bonito. Disse-me que era mais que bonito, era lindo. Disse-lhe que deveria estudar latim, que estas coisas nos conectam inexplicavelmente ao divino propósito. Disse-me que estudaria tudo se assim o pudesse. Outros turistas chegavam e a tecnologia em exercício exigia-lhe atenção - não fotografem, por favor! - pedia sempre com o exato sorriso.
De volta à nave central estendi-lhe a mão e esbocei minha ida-embora. Ele se debruçou sobre a murada de madeira próxima ao altar e apertou forte. Era o primeiro contato, talvez o único que travaríamos na vida. De repente chorei de modo estranho, era como se o choro não se anunciasse e irrompesse com violência. Culpei todos os anjos e o altar. Desculpei-me imediatamente e ele entendeu. A Igreja devolveu com força o eco daquele choro e senti-o explodindo na minha face. Ele disse achar belas as demonstrações de amor à arte, que era assim mesmo, que era necessário se apaixonar sempre pelas coisas, que não se pode viver de outro modo.
Não podia ser por outro propósito - Aleijadinho construira São Francisco de Assis em júbilo às almas XXInescas que se uniriam ali para sempre. Eu quis dizer-lhe tudo o que me vinha à mente e achei-me tolo, como todas as vezes. Encaminhei-me à contra-pernas para a saída. Quando voltei-me ele ainda me olhava, sorrindo benvindouramente. Fingi reparar pela última vez as esculturas e percorri com os olhos seu corpo já formado de homem até atingir seu rosto de menino. Fitei por fim aos dentes, primeiro e último registro da sinceridade de sua existência. Nada como os dentes, ah, minha Beauvoir! Sim, só os dentes são leais num corpo! No fim da nave ajoelhei-me contrito e confessei aos santos todos - todos mesmo, eram muitos - aqueles que não conhecia, chavama-os genericamente - minha danação eterna aos prazeres barrocos de minha carne agrilhoada ad eternum àquele solo onde despencara da abóbada a personificação do sacro-amor ao qual entreguei, cheio de fé e devoção, meu coração desencantado do excesso simétrico da neoclassia burocrática a que sempre pertenci. Alcancei o pórtico de saída e julguei estar tudo igual. Ao tocar minhas chagas, não as encontrei tais quais estavam antes de entrar na São Francisco de Assis. Elas sangravam e era claro que estavam vivas novamente. Eu ressuscitara o amor.