Élvio


Two truths are told,
As happy prologues to the swelling act
Of the imperial theme.
Macbeth. ACT I Scene 3.

A pessoa é para o que é. Eu sou para os sonhos e os romantismos com doses violentas e ardidas de drama. Na outra encarnação devo ter sido a) Lady Di; b) uma travesti barroca e/ou c) Pocahontas. Quando tinha nove anos, morava ao lado de uma agência de turismo. Era uma satisfação, sempre depois de assistir a um capítulo de Mulheres de Areia (principalmente num daqueles em que a Rachel destruía as esculturas de areia do Tonho da Lua, ansiava o dia em que eu faria aquilo também) eu dava uma analisada nas ofertas e comprava meu pacote imaginário. Ele sempre tinha como destino certo “o castelinho”. A revista fora rasgada pela minha irmã mais nova. Exatamente onde estivera a informação do nome e da localização do que por anos chamei de castelinho. Anos depois descobri tratar-se do Castelo de Urquhart, situado nas Highlands escocesas. Aquele seria meu destino certo nesse mundo (claro, logo após Paris).
O cenário não poderia ser perfeito: 2010, eu moro numa cidade onde há um aeroporto que me leva direta e baratamente à Escócia. Reservei tickets, comprei bilhetes de ônibus entre Edinburgh, a capital escocesa e Inverness, cidade de onde parto para o isolado sítio arqueológico do castelo de Urquhart. Sete libras a entrada (também comprados via internet, para antecipar).
Domingo, dia 19 de dezembro de 2010, 10:35 -> check in realizado. Fila de embarque. Atenção senhores passageiros da RyanAir: voo com destinação a Edinburgh cancelado por razões meteorológicas. Dirija-se ao guichê de informações para (...). Eu já não ouvia mais nada. Olhei para fora do aeroporto e tudo era de um branco opressor e absoluto. Era imaculado e me dava ânsia de vômito. Eu presenciava a primeira nevasca da minha vida.
Nada daquilo me impressionava, eu só precisava sair daquele aeroporto o mais rápido possível. O telão de informações que anunciava “EDINBURGH - CANCELLED” tinha o mesmo tom dos carros fúnebres que percorriam Manhumirim para informar as mortes das gentes locais. “O féretro sairá da Igreja Matriz, onde o corpo está sendo velado”.
Quatro horas de espera para um taxi que me levasse de volta até em casa. Seis quilômetros em direção ao centro da cidade através de uma auto-estrada sem acostamento. Pessoas improvisaram travesseiros com suas mochilas e compravam garrafas d’água de dois litros. Estoque sempre é sinal de catástrofe à vista e prudência aplaudida. Entrei na fila. “Moço, me dá um barra grande de Milka – igual à da Laura do Carrossel, lembra?
Coloquei na mochila e marchei sobre 30cm de neve por 6km, em silêncio. Eu cumpria meu féretro, como ensinado na infância. Eu era o único ponto negro a abrir fendas na longa mortalha branca. Ensinaram-me na mesma tenra idade dos nove anos a cumprir o luto para que a dor cesse logo.
A menos de 100 metros de casa, onde nenhum alívio dava sinal de aparecimento, três crianças se divertiam com o recém-construído boneco de neve. Parei para admirar a escultura de gelo, ofereci um pedaço daquela barra imensa de Milka aos pequenos, sorri para eles. Tomei distância e dei uma voadora no boneco de gelo, tirando-lhe a cabeça fora.
Não ouvi, mas soube que as crianças correram e choraram aterrorizadas.
Hoje, dia 19 de dezembro de 2010, dois sonhos inimagináveis dos meus nove anos se realizaram: dividir uma barrona de Milka, igual à da Laura do Carrossel e destruir uma escultura feita por alguém incapaz, provocando-lhe choro.
Passagem remarcada para Edinburgh dia 18 de maio de 2011. O Castelo dos meus sonhos é cercado por florestas de coníferas e não escondido sob a neve. Verde, portanto, ele será.