Élvio
Nada mais maçante que uma ida à lavanderia, num domingo de chuva, no interior da França, certo?
ERRADO! Munido de sabão em pó líquido, amaciante e quase 15kg de roupa, cheguei à lavanderia de Beauvais, acompanhado de Alison, a assistente americana com quem moro, nobre alma que me acompanhou nessa empreitada.
Ao entrar no espaço de pouquíssimos metros quadrados (como tudo em França), deparo-me com uma criança muito feia, uma mistura de Barbie advogada com a Noiva de Chucky, apelidada por nós de Anticristo. A mãe, uma senhora gélida, (também ganhou um apelido: Cold Lady) estava munida de 4 sacolas vazias e vigiava atentamente 5 das 8 máquinas de lavar existentes. As três outras pertenciam a dois senhores que a olhavam com raiva quando chegamos. Demorou uns minutos para ouvirmos a mulher balbuciar umas palavras para o Anticristo num inglês tenebroso. A americana logo diagnosticou: It's from Ireland. O senhor francês começou a nos relatar a história da irlandesa, que monopolizou as máquinas e causou muito desentendimento antes mesmo de nossa chegada. "Ela não pode fazer isso", "Ela não está em casa para tomar conta de todas as máquinas", "Quem, por Deus, tem tanta roupa para lavar" foram algumas das muitas frases proferidas pelos senhores indignados que se sentiam lesados e incomodados na própria pátria (a velha e boa xenofobia de lavanderia).
Quando chegou a minha vez e a de Alison de utilizarmos as máquinas, subitamente, a lavanderia foi invadida por outros membros da gangue do Anticristo: O pai de Satanás, a vó de Satanás, uma prostituta irlandesa e seu pobre esposo COM UM CARRINHO de bebê, cujo ocupante estava aos berros, além de um idiotinha de 4 anos, incapaz de arrastar seu carrinho de brinquedo pela corda improvisada pelo pai. Houve uma briga imediata pelo uso das máquinas. Eu, brasileiro que sou, comecei a jogar a roupa limpa da gangue do Anticristo no chão para acomodar as minhas sedas chinesas na máquina, enquanto a mais idosa do grupo puxava papo comigo, a quem fiz questão de responder em inglês grosseiro. "You get your asses in the chairs and you'll wait". Como se eu a tivesse oferecido um chá com flores, ela se animou a me contar o motivo de sua viagem.
Disse a ela: "I don't wanna hear you".
Ela, com inocência nos olhos: "Why not?"
Eu, com a fúria de Marimar descalça: "I don't like you".
Não que eu achasse que minha rudeza fosse detê-la, mas parece que ela ficou encantada comigo e resolveu ser minha amiga instantânea. De fato estava curioso, pois a cena era claramente surreal: O que faz um bando de irlandeses numa lavanderia no interior da França em pleno domingo de chuva???? Antes de ouvir a senhora, tive que correr para apartar a briga da americana que se iniciava com o francês.
Explico: o francês, outro ignorante do interior, como só os europeus roceiros sabem ser, ao ouvir o idioma inglês, achou que se tratassem de americanos e fez um comentário justamente com Alison, pois ele a julgou inglesa. Ela, por sua vez, cobrava explicações sobre o porquê de ele ter achado que se tratavam de americanos, etc e tal... Um olho na máquina, outro em Alison em fúria, defendendo a sua nem tão amada pátria.
De volta à simpática Chicken Fat Lady (apelido da octogenária que fedia à gordura), descobri que a trupe partira do norte da Irlanda, de carro, para fazer camping em Beauvais, norte da França. Como o dia foi chuvoso, resolveram lavar a roupa de um mês de viagem. De oito pessoas. (ÓBVIO, não?)Um sorriso começou a brotar da minha face. Não consegui achar graça na hora, por mais que houvesse. Ensaiei mil perguntas. Não tive coragem de fazer nenhuma, pois temia pelas respostas.
Cold Lady (a chefe da gangue, que defendia as máquinas como filhos) inicia outra disputa comigo pelo uso da secadora. Primeiro, ela diz que vai usá-la, mas precisa esperar 20 minutos até a sua roupa acabar de lavar (a secadora funciona em ciclos de 6 minutos, o que significa que poderia ser utilizada 3 vezes antes dela). Ela pára em frente à secadora. Eu não me amedronto, coloco meus 40 centavos na máquina e aciono o botão de ligar. Ela me olha gelidamente. Eu faço meu melhor olhar black bitch e digo: "Get the hell off my way, freak!". A americana começa a gargalhar. Chicken Fat Lady diz que meu inglês é confuso e que eu preciso entrar num curso urgente. Alison parece que vai ter uma convulsão. O marido de Cold Lady chega com 5 sacos repletos de ... TAPETES.
Olhei para os sacos de tapetes, tentei refletir por um momento: camping em Beauvais + tapete. Conexão lógica, conexão lógica, conexão lógica.... Apagão e exaustão mental.
De nada mais me lembro....
Élvio

Moon River ao pé de Sacre Coeur às 8h da manhã pintou de rosa os telhados de Paris, deixando-os úmidos da satisfação de um choro outrora reclamado.