Tinha vergonha de tudo o que sentia, desde que se entende
por gente. Gostava do Ramon, da segunda série, muito bonito e muito loiro naquele
uniforme azul celeste de escola católica. Também alto, magro, sisudo. A gente
costumava brincar na gruta de Nossa Senhora, sempre juntos, sob os olhares
atentos das estátuas de hábitos. Estudar numa escola católica é viver num mundo
sem espelhos. Criança que era, esqueci que eu, aos oito anos, também era
bonito, loiro, usava uniforme azul celeste, era alto e ainda era um menino
muito magro. Talvez essa tenha sido a primeira vez em que me perdi no outro.
Extinta a capacidade de sentir qualquer simpatia por aquele ser abjeto que eu
julgava ser, eu me buscava em outros meninos. Se os amava ou amava a ideia de
mim mesmo vislumbrada em outros rostos, é uma dúvida que vai ficar para sempre
sem resposta.
Hoje tenho quase trinta anos e ainda sou o menino da gruta a
brincar em grutas com os colegas que me atraem. O mundo continua sem espelhos e sinto
adentrar, cada dia mais, nessa gruta. Escuto minha respiração ofegante e
desconcertada, meus passos e minha visão se habituaram a tal ponto com esse
ambiente úmido, gelado e insalubre que mal podem conceber um outro estado de
sensações. A única coisa que difere o moço de trinta do garoto de oito é a
consciência de gruta. O moço sabe que está numa gruta, chora, esmurra as
paredes de pedra até arrebentar os tendões. Do negro, só o vermelho sobressai
naquela cavidade oca e retumbante, então o moço esmurra mais a mão, chega a
machucar o rosto apenas para se libertar da monocromia opressora do negro. Ele se
lembra de como o azul celeste era lindo e chora – avatar do menino de oito
anos. Ele gostaria de poder rever o Ramon apenas para contemplar seu uniforme
novamente, pois, remoçado de vinte anos, a consciência de si enquanto
indivíduo que também vestia uniforme azul celeste se anulava catolicamente.
O moço ainda se arrasta, meninamente, pela gruta da escola.
Um dia precisou entrar às pressas nessa gruta para fugir das freiras que o
perseguiam por alguma abominação bíblica que o garoto não entendia, mas o tom
daquele crucifixo era prelúdio de coerção, então ele resolveu se esconder junto
a Nossa Senhora, pois aquela era uma certeza infantil: o manto de Nossa Senhora
o protegeria, não importa como. Pois ela era mãe. E também se vestia de azul
celeste. Vendo que o menino corria perigo, ela o escondeu sob seu manto, o
beijou e o conduziu à gruta: “Pequeno, permaneça aqui dentro dessa gruta até o
dia em que eu vier te buscar. Confia na tua mãe.”
O menino confiou na mãe, pois azul celeste. Cresceu,
engordou, perdeu cabelo e os que sobraram guardam uma memória irônica e indecisa
daquele loiro-Ramon, virou moço, afinal. Hoje esse moço se debate, desesperado, dentro da
gruta. Grita por Nossa Senhora, pede proteção, chora baixinho, blasfema e pede
perdão quase que na mesma frase. O moço não sabe o que fazer com o uniforme
curto e apertado ao corpo. Guarda-o, pois azul celeste. A gruta é a sua casa,
mas ele jamais está confortável, digamos que a umidade daquela cavidade lhe
causa terríveis alergias, o moço vaga a espirrar e a conversar com seu eco, que
lhe conforta, pois fez do eco trêmulo seu ego.
Hoje o moço está perdido, pois resolveu acessar partes desconhecidas
da gruta de Nossa Senhora. Um medo lhe percorre o corpo uniforme, um medo que é
a sala da diretora e a bronca vermelha, caderno grande de palavra que assusta mesmo:
ADVERTÊNCIA. “A terceira é expulsão.”
O moço se apavora muito e resolve recuar pro meio profundo
da gruta de Nossa Senhora. Se mais além encontrasse a sala da diretora e fosse expulso da escola,
não saberia o que iria fazer de si, outra vez menino, loiro, magro, porém despido
do uniforme azul celeste, o amor da sua vida.
O moço, minha nossa! está perdido pra valer.